na língua das plantas

diego cardoso
2 min readMay 20, 2022

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eu havia dado as costas à tela na qual não conseguia me concentrar por um tempo que não fosse muito curto. aquela era mais uma das várias vezes em que isso ocorria naquele dia. eu olhava para fora, pela janela. mergulhado num pensamento que mais parecia um labirinto. eu pensava sobre não saber.

quando regressei dos pensamentos reparei que uma árvore distante na paisagem me encarava. ou eu a encarava. uma árvore no meio de algumas outras, a maior delas e de um tipo diferente. uma coloração verde mais escura, galhos uniformes, pontuda. eu diria que é um pinheiro. e que balança lentamente com o vento. e que sempre esteve lá, na direção da minha janela, sem que eu nunca reparasse com minúcia. até ali.

seria possível traçar uma reta sem obstáculos entre nós. se desvio o olhar da tela em direção à paisagem enquadrada pela janela eu a vejo. imóvel. exatamente como eu estava, pouco antes de notá-la melhor, quando pensava melancolias. será que ela também?

no caminho entre eu e a árvore havia um vaso repousando sobre minha janela. me aproximei e julguei que a planta estivesse morrendo. pensei de novo sobre a limitação de saber certas coisas. dizem que as plantas tem uma linguagem própria. desconfio que seja verdade e elas sabem muito mais do que nós mesmos. e que por isso nos assistem com indiferença sabendo que é passageira essa ilusão de domínio num pequeno planeta. desconfio que se um dia soubermos o que dizem tudo será diferente.

tentei mais uma vez me concentrar na tela. desviei o olhar para o vaso de planta. apertei com os dedos uma folha seca e ameacei arrancá-la. nessa hora você chegou — não te ouvi chegando — e me impediu que arrancasse a folha da planta. ela não estava tão seca, você tinha razão. e com sede? será que tinha sede? talvez tivesse sede.

você me fez uma pergunta numa língua que eu não conheço. eu respondi sem usar palavras e você não compreendeu o que eu disse. eram coisas sem importância e eu me concentrava na tela. não molhei as plantas. já havia molhado ontem. a terra ainda estava úmida. água em excesso pode matá-las. mas quanto?

se olho para fora a primeira coisa que percebo é a árvore. ela permanece imóvel e como se me esperasse pelo momento em que vou me distrair e mergulhar o pensamento em coisas que perturbam minha cabeça como faço inúmeras vezes. me esquecendo do tempo, imóvel, balançando levemente, como se a imitasse. sempre que a vejo penso um pouco em mim e numa espécie de vazio.

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diego cardoso

dramaturgo, pesquisador e professor. ficção não ficção.